Fundamentos para a restauração da justiça - I
Resolução de conflitos na Justiça Restaurativa e a ética da alteridade e diálogo
Marcelo Pelizzoli - Dr. em Filosofia. Professor da Universidade Federal de Pernambuco – Brasil. opelicano@gmail.com
Este texto é fruto de reflexão em andamento, e busca de modo filosófico encontrar fundamentos para uma renovada visão de justiça, contemplando em especial - mas não unicamente - a chamada Justiça Restaurativa, no que isso tem de amplo. Busco em fontes inspiradoras de grande sabedoria mundial iluminar esses passos. Tais fontes são, como se pode ver pela bibliografia final, a ética da alteridade (Levinas em especial), a Comunicação Não-Violenta (na figura de M. Rosemberg e D. Barter) bem como a Cultura de Paz, a hermenêutica com inspiração em Gadamer; a essência ética do cristianismo e do budismo, algo da análise psicológica da Sombra na moral, e também da crítica ecológica e socialista ao Direito Liberal Moderno. Não podemos exigir que um operador do Direito seja escolado em filosofia, mas que o seja na ética, na visão social e na sensibilidade ao seu tempo. Nesta área, é necessário ser tão objetivo quanto aberto. Aberto significa igualmente o aspecto (auto)crítico: por exemplo, poder perguntar o que representou o modelo sacrificial e punitivo nas sociedades conservadoras; e, mais tarde, nas sociedades liberais perpassadas pela Lex dura lex. No mesmo barco, pagam a conta os vencidos: vae victis, ai, ai das vítimas ! Nitidamente, temos hoje um aparato jurídico e policial, dentro da garantia de Estado distanciada da realização da res publica efetiva, e uma sociedade que não encontra boa realização de seus vínculos e conflitos no Estado; e, por conseguinte, temos como que um Estado paralelo privado com aparatos de segurança, com seus lobbies poderosos; e temos um poder paralelo de grupos, como no tráfico por exemplo. Eles se tornam auto-justificáveis e são aparelhos defensivos. Defensivos de quem e como ? Por que é tão necessário defender-se assim ? Tratar-se-á pois, em termos de Justiça e legislação, de estabelecer novas leis, mais rígidas ?
Muitas vezes me pergunto se não estamos construindo, na idéia da cultura do medo, construindo empoderamentos reacionários, no sentido de recrudescer a repressão, atuando apenas na ponta do iceberg. Daí frases neofascistas a brotar: "ladrão tem que morrer; viva a pena de morte; pena máxima; prostituta vagabunda; era homossexual mesmo; morreu, mas tinha passagem na polícia mesmo; é bom castigo pra aprender; grupo de extermínio; vingança..."; e assim segue a grosseira ignorância.
Este texto é escrito num tempo de urgências, e tenta unir fundamentação filosófica, no que isso significa pensar-cuidar, no que está por trás dos fenômenos sociais-institucionais relativos à questão Justiça e Ética, como pensamento crítico e engajado, buscando estimular o novo tempo, o que temos chamado de novo paradigma: restaurativo, da alteridade, ecológico, holístico, bioético, complexo.
Qual o sentido da Filosofia neste contexto? Eis sua força: pauta-se originalmente na pergunta, e no perguntador. Visa não a solução final e o controle em primeiro lugar, ao modo de um objeto fixado, mas a abertura de horizontes de compreensão em torno de questões intercambiáveis, remetendo aos fundamentos orientadores. Procura abarcar o sentido dos nossos jogos da vida, dos processos de felicidade e sofrimento e das significações vitais por trás das aparências. Na maioria das vezes, a não compreensão das dimensões (sistêmicas, radicais, ontológicas (de essência), históricas...) de um problema contamina toda e qualquer direção de resolução. Exemplo: se temos uma noção de humano como primordialmente agressividade-raiva, e então de justiça como algo punitivo-repressivo, dificilmente vamos entender a procedência de processos de mediação baseada em visões sociais da cultura de paz. Por isso, entender o Saber (ciências em geral) como processo de resposta infinita e errante às perguntas da existência humana, interhumana e ambiental, me permite chegar mais próximo ao perguntador e à sua dor, às suas inquietações. No fundo, trata-se de quem somos e como vivemos ? Sócrates, o pai da filosofia, o homem do dia-logos, nos dá a pista, quando diz: "conhece-te a ti mesmo". Ou ainda: "Antes de buscar calar a boca de meus críticos, procuro tornar-me melhor".
A Filosofia pode fazer perguntas radicais e simples, como as crianças, que desconcertam: de quê estamos falando propriamente ? Fala-se de objetos fixos e problemas específicos, mas, o que temos como significações primeiras, o que está pesando, na real ? Que modelo de pessoa tenho na cabeça, de mundo, de sociedade, de natureza, de história, de ética, de justiça ? Como vejo o outro e o conflito ? O que eu quero da vida ? Uma coisa está ligada à outra; precisamos apreciar algo em conjunto...
1. Visão de conjunto e contexto de crise
Se queremos entender melhor do que se trata com Justiça, precisamos pensar o momento histórico-cultural vivido, num mundo que foi, a fórceps por vezes, se globalizando. A visão de contexto/conjunto aponta para uma crise de paradigma, do que nenhuma ciência ou prática institucionalizada escapou; e é justamente nesta seara pantanosa e ao mesmo tempo fértil que surgem as formas alternativas dentro de uma possível cultura de paz.
Na entrada do séc. XX temos uma ruptura epistemológica séria, dentro do Saber e chegando às bases civilizacionais como um todo. Isso significa que os modelos compreensivos de mundo, por exemplo, de matéria como algo sólido atomizado, de pessoa individual sem inconsciente, de fatos objetivos no mundo externo independentes do observador, de dimensão fragmentária e simplificadora da vida, da divisão homem-natureza, entre outros, estes modelos imperantes começam a ruir. Não apenas pelo surgimento de novas teorias mais apuradas, mas devido aos efeitos danosos desta epistemologia, que toca e molda imediatamente a concepção estética (sensibilidade), ontológica (o ser das coisas), sociológica e ética em especial, valores que seguimos. Em termos mais técnicos, trata-se de um questionamento radical do positivismo e do cartesianismo. Nossa cultura - e então o Direito - é bastante contaminada com estas cosmovisões. Em nome de uma pretensa objetividade factual, de uma visão positivista dos conflitos sociais como fatos simples passíveis de legislação simplificadora, temos por exemplo sujeitos de deveres e direitos destacados de seus contextos sociais, emocionais, enfim, ambientais. Por isso, está em xeque o modelo do Direito Liberal vindo da Modernidade, a noção de Justiça, de imputabilidade individual e assim por diante. Está em jogo o fundamento mítico da Justiça institucionalizada, como veremos.
Como superar tais limitações/contaminações? Neste contexto surgem teorias e movimentos novos, como Direitos Humanos, Direitos Difusos, Direito alternativo anti-positivista, Hermenêutica Jurídica, e a Justiça Restaurativa, uma de nossas inspirações nesta temática aqui exposta. Em todo caso, expõe-se o ferimento: o interregno e impasse que habita o Direito enquanto Ciência Social e Humana diante da cooptação do mesmo pelo estatuto epistemológico (cartesiano) das Ciências Naturais - pautadas na abordagem positivista. Nesta abordagem, por exemplo, não se entrou nos méritos das condições materiais concretas dos parceiros em conflito. Neste modelo de Direito há uma ênfase legal abstrata, bem como um legalismo algo religioso, como garantidor de normas que partem de uma desigualdade gritante; daí ser chamado por alguns de Direito Burguês. Há um acordo implícito entre os bem incluídos para o seu funcionamento; uma vez posto em marcha, o trem custa a parar, em nome mesmo de pretensa democracia e de um Estado de Direito. Aí entra a hipocrisia oficial e do poder privado.
Vamos à prática: um "sem-terra" necessitado ocupa uma grande propriedade ociosa. Legalmente tem sido visto como um crime, no entanto, moralmente sabemos todos que não é, pois nesta condição, na verdade, trata-se de justiça social. Ou ainda: por que o "ladrão de galinha" é condenado e o "ladrão engravatado" é solto? O próprio cristianismo – que contribuiu para a dicotomia Bem X Mal e a legitimação do "poder terreno" - seja na Bíblia, seja na Doutrina Social da Igreja Católica por exemplo, contempla uma outra noção de justiça, quando institui o modelo do perdão das dívidas desde o Antigo Testamento, ou do acolhimento material dos pobres, ou de Jesus quando diz que quem tem fome pode pegar alimento onde sobra; a Doutrina Social considera lícito certas condições de "furto". Neste sentido, quando um "menino de rua" assalta um rico (e com um pouco mais de dinheiro já se é rico no III Mundo), devemos ter estes aspectos éticos (para além do moralismo) em mente. Quão falsa pode ser a moral vigente!?! Por vezes, um ato imoral ou dito crime toca num fundamento ético mais profundo. Os recursos em comum, mas também o furto é quase tão antigo quanto o homem, e sofreu uma moralização excessiva; hoje podemos pensar sem medo o papel de estabilizador social da própria transgressão, e também o de alarme social. É difícil negar o papel social dos Robin Woods da vida; trata-se sem dúvida de redistribuir empoderamentos, bens, dignidade etc.; é condição essencial para a manutenção social futura. Hoje há condições de compreensão social sistêmica suficiente para apontar que o enriquecimento despreocupado, numa sociedade carente, é muito mais imoral do que certos atos criminosos dos pobres. Por que não o consideramos ainda crime ? Se temos a dimensão da dívida social implicada no valor, no símbolo dinheiro, poderemos entender que a acumulação de capital significa matar gradativamente de fome, gerar violência. E assim começamos corajosamente a perceber uma das grandes causas da chamada "violência". Para esses fins deveríamos falar em violência externa, ilícita, e em violência oculta, tornada lícita. Por que achamos que uma é muito pior do que a outra ?
Em todo caso, numa cultura de paz, não se trata de defender a violência de uma das partes, e o foco é algo como o processo de restauração do violado, o que não exclui as reflexões acima, na medida em que não temos uma situação ideal de parceria social, mas desnivelada. Como falar em justiça, justiça restaurativa, de ofensas/danos/crimes prescindindo do contexto social, econômico e sistêmico ??
Por fim, para ilustrar a mudança histórica e a crisis, como ruptura de paradigma, é só olhar para os grandes movimentos contemporâneos: Ecologia, Física quântica e complexidade, Feminismo, Direitos humanos e paz, revoltas socialistas, o advento estrondoso da psicanálise, a retomada da espiritualidade e de práticas alternativas. A arte contemporânea revelou tal mudança de forma sintomática, e para muitos desconstrutora. As visões da alteridade e da Hermenêutica incluem-se aí neste novum, para além certamente do moralismo.
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