Fundamentos para a restauração da justiça - II
1. Visão de conjunto e contexto de crise
Se queremos entender melhor do que se trata com Justiça, precisamos pensar o momento histórico-cultural vivido, num mundo que foi, a fórceps por vezes, se globalizando. A visão de contexto/conjunto aponta para uma crise de paradigma, do que nenhuma ciência ou prática institucionalizada escapou; e é justamente nesta seara pantanosa e ao mesmo tempo fértil que surgem as formas alternativas dentro de uma possível cultura de paz.
Na entrada do séc. XX temos uma ruptura epistemológica séria, dentro do Saber e chegando às bases civilizacionais como um todo. Isso significa que os modelos compreensivos de mundo, por exemplo, de matéria como algo sólido atomizado, de pessoa individual sem inconsciente, de fatos objetivos no mundo externo independentes do observador, de dimensão fragmentária e simplificadora da vida, da divisão homem-natureza, entre outros, estes modelos imperantes começam a ruir. Não apenas pelo surgimento de novas teorias mais apuradas, mas devido aos efeitos danosos desta epistemologia, que toca e molda imediatamente a concepção estética (sensibilidade), ontológica (o ser das coisas), sociológica e ética em especial, valores que seguimos. Em termos mais técnicos, trata-se de um questionamento radical do positivismo e do cartesianismo. Nossa cultura - e então o Direito - é bastante contaminada com estas cosmovisões. Em nome de uma pretensa objetividade factual, de uma visão positivista dos conflitos sociais como fatos simples passíveis de legislação simplificadora, temos por exemplo sujeitos de deveres e direitos destacados de seus contextos sociais, emocionais, enfim, ambientais. Por isso, está em xeque o modelo do Direito Liberal vindo da Modernidade, a noção de Justiça, de imputabilidade individual e assim por diante. Está em jogo o fundamento mítico da Justiça institucionalizada, como veremos.
Como superar tais limitações/contaminações? Neste contexto surgem teorias e movimentos novos, como Direitos Humanos, Direitos Difusos, Direito alternativo anti-positivista, Hermenêutica Jurídica, e a Justiça Restaurativa, uma de nossas inspirações nesta temática aqui exposta. Em todo caso, expõe-se o ferimento: o interregno e impasse que habita o Direito enquanto Ciência Social e Humana diante da cooptação do mesmo pelo estatuto epistemológico (cartesiano) das Ciências Naturais - pautadas na abordagem positivista. Nesta abordagem, por exemplo, não se entrou nos méritos das condições materiais concretas dos parceiros em conflito. Neste modelo de Direito há uma ênfase legal abstrata, bem como um legalismo algo religioso, como garantidor de normas que partem de uma desigualdade gritante; daí ser chamado por alguns de Direito Burguês. Há um acordo implícito entre os bem incluídos para o seu funcionamento; uma vez posto em marcha, o trem custa a parar, em nome mesmo de pretensa democracia e de um Estado de Direito. Aí entra a hipocrisia oficial e do poder privado.
Vamos à prática: um "sem-terra" necessitado ocupa uma grande propriedade ociosa. Legalmente tem sido visto como um crime, no entanto, moralmente sabemos todos que não é, pois nesta condição, na verdade, trata-se de justiça social. Ou ainda: por que o "ladrão de galinha" é condenado e o "ladrão engravatado" é solto? O próprio cristianismo – que contribuiu para a dicotomia Bem X Mal e a legitimação do "poder terreno" - seja na Bíblia, seja na Doutrina Social da Igreja Católica por exemplo, contempla uma outra noção de justiça, quando institui o modelo do perdão das dívidas desde o Antigo Testamento, ou do acolhimento material dos pobres, ou de Jesus quando diz que quem tem fome pode pegar alimento onde sobra; a Doutrina Social considera lícito certas condições de "furto". Neste sentido, quando um "menino de rua" assalta um rico (e com um pouco mais de dinheiro já se é rico no III Mundo), devemos ter estes aspectos éticos (para além do moralismo) em mente. Quão falsa pode ser a moral vigente!?! Por vezes, um ato imoral ou dito crime toca num fundamento ético mais profundo. Os recursos em comum, mas também o furto é quase tão antigo quanto o homem, e sofreu uma moralização excessiva; hoje podemos pensar sem medo o papel de estabilizador social da própria transgressão, e também o de alarme social. É difícil negar o papel social dos Robin Woods da vida; trata-se sem dúvida de redistribuir empoderamentos, bens, dignidade etc.; é condição essencial para a manutenção social futura. Hoje há condições de compreensão social sistêmica suficiente para apontar que o enriquecimento despreocupado, numa sociedade carente, é muito mais imoral do que certos atos criminosos dos pobres. Por que não o consideramos ainda crime ? Se temos a dimensão da dívida social implicada no valor, no símbolo dinheiro, poderemos entender que a acumulação de capital significa matar gradativamente de fome, gerar violência. E assim começamos corajosamente a perceber uma das grandes causas da chamada "violência". Para esses fins deveríamos falar em violência externa, ilícita, e em violência oculta, tornada lícita. Por que achamos que uma é muito pior do que a outra ?
Em todo caso, numa cultura de paz, não se trata de defender a violência de uma das partes, e o foco é algo como o processo de restauração do violado, o que não exclui as reflexões acima, na medida em que não temos uma situação ideal de parceria social, mas desnivelada. Como falar em justiça, justiça restaurativa, de ofensas/danos/crimes prescindindo do contexto social, econômico e sistêmico ??
Por fim, para ilustrar a mudança histórica e a crisis, como ruptura de paradigma, é só olhar para os grandes movimentos contemporâneos: Ecologia, Física quântica e complexidade, Feminismo, Direitos humanos e paz, revoltas socialistas, o advento estrondoso da psicanálise, a retomada da espiritualidade e de práticas alternativas. A arte contemporânea revelou tal mudança de forma sintomática, e para muitos desconstrutora. As visões da alteridade e da Hermenêutica incluem-se aí neste novum, para além certamente do moralismo.
Se queremos entender melhor do que se trata com Justiça, precisamos pensar o momento histórico-cultural vivido, num mundo que foi, a fórceps por vezes, se globalizando. A visão de contexto/conjunto aponta para uma crise de paradigma, do que nenhuma ciência ou prática institucionalizada escapou; e é justamente nesta seara pantanosa e ao mesmo tempo fértil que surgem as formas alternativas dentro de uma possível cultura de paz.
Na entrada do séc. XX temos uma ruptura epistemológica séria, dentro do Saber e chegando às bases civilizacionais como um todo. Isso significa que os modelos compreensivos de mundo, por exemplo, de matéria como algo sólido atomizado, de pessoa individual sem inconsciente, de fatos objetivos no mundo externo independentes do observador, de dimensão fragmentária e simplificadora da vida, da divisão homem-natureza, entre outros, estes modelos imperantes começam a ruir. Não apenas pelo surgimento de novas teorias mais apuradas, mas devido aos efeitos danosos desta epistemologia, que toca e molda imediatamente a concepção estética (sensibilidade), ontológica (o ser das coisas), sociológica e ética em especial, valores que seguimos. Em termos mais técnicos, trata-se de um questionamento radical do positivismo e do cartesianismo. Nossa cultura - e então o Direito - é bastante contaminada com estas cosmovisões. Em nome de uma pretensa objetividade factual, de uma visão positivista dos conflitos sociais como fatos simples passíveis de legislação simplificadora, temos por exemplo sujeitos de deveres e direitos destacados de seus contextos sociais, emocionais, enfim, ambientais. Por isso, está em xeque o modelo do Direito Liberal vindo da Modernidade, a noção de Justiça, de imputabilidade individual e assim por diante. Está em jogo o fundamento mítico da Justiça institucionalizada, como veremos.
Como superar tais limitações/contaminações? Neste contexto surgem teorias e movimentos novos, como Direitos Humanos, Direitos Difusos, Direito alternativo anti-positivista, Hermenêutica Jurídica, e a Justiça Restaurativa, uma de nossas inspirações nesta temática aqui exposta. Em todo caso, expõe-se o ferimento: o interregno e impasse que habita o Direito enquanto Ciência Social e Humana diante da cooptação do mesmo pelo estatuto epistemológico (cartesiano) das Ciências Naturais - pautadas na abordagem positivista. Nesta abordagem, por exemplo, não se entrou nos méritos das condições materiais concretas dos parceiros em conflito. Neste modelo de Direito há uma ênfase legal abstrata, bem como um legalismo algo religioso, como garantidor de normas que partem de uma desigualdade gritante; daí ser chamado por alguns de Direito Burguês. Há um acordo implícito entre os bem incluídos para o seu funcionamento; uma vez posto em marcha, o trem custa a parar, em nome mesmo de pretensa democracia e de um Estado de Direito. Aí entra a hipocrisia oficial e do poder privado.
Vamos à prática: um "sem-terra" necessitado ocupa uma grande propriedade ociosa. Legalmente tem sido visto como um crime, no entanto, moralmente sabemos todos que não é, pois nesta condição, na verdade, trata-se de justiça social. Ou ainda: por que o "ladrão de galinha" é condenado e o "ladrão engravatado" é solto? O próprio cristianismo – que contribuiu para a dicotomia Bem X Mal e a legitimação do "poder terreno" - seja na Bíblia, seja na Doutrina Social da Igreja Católica por exemplo, contempla uma outra noção de justiça, quando institui o modelo do perdão das dívidas desde o Antigo Testamento, ou do acolhimento material dos pobres, ou de Jesus quando diz que quem tem fome pode pegar alimento onde sobra; a Doutrina Social considera lícito certas condições de "furto". Neste sentido, quando um "menino de rua" assalta um rico (e com um pouco mais de dinheiro já se é rico no III Mundo), devemos ter estes aspectos éticos (para além do moralismo) em mente. Quão falsa pode ser a moral vigente!?! Por vezes, um ato imoral ou dito crime toca num fundamento ético mais profundo. Os recursos em comum, mas também o furto é quase tão antigo quanto o homem, e sofreu uma moralização excessiva; hoje podemos pensar sem medo o papel de estabilizador social da própria transgressão, e também o de alarme social. É difícil negar o papel social dos Robin Woods da vida; trata-se sem dúvida de redistribuir empoderamentos, bens, dignidade etc.; é condição essencial para a manutenção social futura. Hoje há condições de compreensão social sistêmica suficiente para apontar que o enriquecimento despreocupado, numa sociedade carente, é muito mais imoral do que certos atos criminosos dos pobres. Por que não o consideramos ainda crime ? Se temos a dimensão da dívida social implicada no valor, no símbolo dinheiro, poderemos entender que a acumulação de capital significa matar gradativamente de fome, gerar violência. E assim começamos corajosamente a perceber uma das grandes causas da chamada "violência". Para esses fins deveríamos falar em violência externa, ilícita, e em violência oculta, tornada lícita. Por que achamos que uma é muito pior do que a outra ?
Em todo caso, numa cultura de paz, não se trata de defender a violência de uma das partes, e o foco é algo como o processo de restauração do violado, o que não exclui as reflexões acima, na medida em que não temos uma situação ideal de parceria social, mas desnivelada. Como falar em justiça, justiça restaurativa, de ofensas/danos/crimes prescindindo do contexto social, econômico e sistêmico ??
Por fim, para ilustrar a mudança histórica e a crisis, como ruptura de paradigma, é só olhar para os grandes movimentos contemporâneos: Ecologia, Física quântica e complexidade, Feminismo, Direitos humanos e paz, revoltas socialistas, o advento estrondoso da psicanálise, a retomada da espiritualidade e de práticas alternativas. A arte contemporânea revelou tal mudança de forma sintomática, e para muitos desconstrutora. As visões da alteridade e da Hermenêutica incluem-se aí neste novum, para além certamente do moralismo.
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